Dirigido
por Helvio Soto, cineasta chileno que foi exilado após o golpe de Estado
ocorrido no Chile em 11 de setembro de 1973, o filme Chove Sobre Santiago é de
1975, e relata justamente os acontecimentos do dia do golpe, os quais são
intercalados com cenas ocorridas nos anos anteriores ao golpe, desde quando
Salvador Allende vence as eleições presidenciais em 1970 e dá-se início a um
plano para prejudicar seu governo que culmina no golpe. O filme tem seu final
no enterro do poeta chileno Pablo Neruda, o qual apoiava o governo da Unidade
Popular e faleceu em 23 de setembro de 1973, pouquíssimos dias depois do golpe.
Precisamente, o filme foi proibido de ser exibido no Chile pelo regime militar.
A
coalizão Unidade Popular, a qual era representada por Allende, apesar de
assumir o poder em 1970 e conseguir implementar mudanças significativas no
país, sofre com as sucessivas tentativas realizadas para fragilizar seu
governo, facilitadas pelo fato de que boa parte do alto escalão do Estado
chileno continuou o mesmo do governo de Eduardo Frei, que governou o Chile de
1964 a 1970 quando Allende que vence as eleições contra Jorge Alessandri,
candidato que era do partido de Frei. O governo de Frei também tinha apoio
norte-americano, o qual foi decisivo nesse processo de fragilização do governo
de Allende e no golpe de 1973.
O
país que inicialmente, com o governo de Allende, vê mudanças importantes para a
construção da democracia, passa a assistir a um processo de sucessivos boicotes
motivados pelos interesses norte-americanos, do empresariado estrangeiro e da
burguesia chilena. Retira-se o fornecimento de itens básicos para a vida da
população, como por exemplo o leite, conforme é mostrado no filme, com o
intuito de comprometer a imagem do governo de Allende diante da população, e
essa estratégia consegue dar resultados. A situação que se instaura com o fim
do fornecimento de bens importantes para a população, do estímulo à realização
de diversas greves pelo país e outras tentativas de boicote, nos leva a notar
que ocorre um retrocesso no que diz respeito a ideia de cidadania, sobretudo,
nesse caso, no que se refere aos direitos sociais, que tratam do direito de ter
participação na riqueza coletiva.
Percebe-se
nessa influência internacional, não apenas dos norte-americanos, mas também das
outras ditaduras já instauradas na América Latina no período, aquilo que foi
abordado por Carvalho (2002) como sendo uma crise do Estado-nação, que seria
ocasionada, entre outras coisas, pela internacionalização do sistema
capitalista, a qual é cada vez mais acelerada por conta dos avanços
tecnológicos, e isso acaba resultando numa redução do poder dos Estados, que
agora sofrem a interferência dos outros, afetando fortemente a natureza dos
direitos já existentes assim como o processo de criação, ou não, de novos
direitos, sobretudo no que diz respeitos aos direitos políticos e sociais,
conforme é apontado pelo autor, lembrando que a construção da cidadania está
intimamente relacionada a forma como as pessoas se relacionam com o Estado e
com a nação, sendo que o ideal para a cidadania é que exista uma relação
positiva das pessoas com o Estado e a nação, pois as pessoas se tornam cidadãs,
dentro da noção de cidadania como nós a conhecemos, à medida em que passam a se
sentir parte de uma nação e de um Estado.
Sobre
isso merece destaque outra observação feita por Carvalho (2002), que é a noção
de que a identificação com a nação pode ser mais forte do que a lealdade ao
Estado. Isso é visto claramente no filme na cena em que milhares de chilenos
estão presos no Estádio Nacional vendo os militares agredindo alguns dos que
contestam suas atitudes. Os chilenos presos, em certa altura, começam a cantar
um hino que expressa a lealdade deles para com a nação chilena, em um momento
no qual se veem numa situação em que o Estado se mostra como algo completamente
estranho à ideia de nação. Essa situação, segundo Carvalho, se explicaria pelo
fato de que a identidade com a nação, se deve a fatores como religião, língua e
lutas e guerras contra inimigos comuns, enquanto que a lealdade ao Estado
dependeria do grau de participação na vida política, participação esta que já
se via completamente impossibilitada para o povo chileno no dia 11 de setembro
de 1973.
Da
constatação de que não haviam mais direitos políticos para os chilenos, chegamos
a outro problema: conforme Carvalho (2002), se não tem direitos políticos, não
existem direitos civis, os quais englobam as liberdades individuais como a
liberdade de opinião e organização, e sobretudo o direito à vida. Isso quer
dizer que a conquista de melhorias significativas em prol da construção da
democracia pela qual o Chile vinha passando, foi seguida por uma supressão de
direitos e garantias, um imenso retrocesso no que diz respeito a cidadania do
povo chileno, visto que os 3 tipos de direitos necessários para a cidadania se
encontravam profundamente comprometidos.
Para
além dessas observações, percebe-se claramente um total desrespeito aos
direitos humanos, pois, conforme o observado por Benevides (2015), ainda que as
pessoas de um país não tenham seus direitos de cidadania respeitados, visto que
a cidadania trata dos direitos e deveres que se circunscrevem nos limites de um
Estado-nação, elas ainda possuem direitos humanos fundamentais, pois estes são
universais e naturais, ou seja, não dependem da realidade específica de um
país, e com isso, portanto, se estendem a todos os seres humanos. Isso se dá
porque os direitos humanos se referem à pessoa humana independentemente das
características físicas, culturais, da classe social, da nacionalidade, dos
direitos de cidadania contemplados no país em que cada um vive, e até mesmo da
personalidade que cada ser humano possa ter. Logo, em vista desses direitos
fundamentais, nenhum ser humano pode ser torturado, humilhado cruelmente ou ter
sua vida tirada por outros, pois o núcleo dos direitos humanos é o direito à
vida. Além disso, também é direito fundamental de todo ser humano o de ser
julgado imparcialmente e poder defender-se judicialmente. Nota-se que todos
esses direitos estavam severamente desrespeitados no golpe, visto que os
militares julgavam arbitrariamente aqueles que os contestavam e com um total
desrespeito à vida dessas pessoas. Benevides (2015) ainda nos leva a refletir
sobre o fato de que havia o consentimento dos países vizinhos ao Chile, dos
quais muitos já se encontravam em ditaduras, e dos norte-americanos, com as
violações aos direitos fundamentais cometidos no Chile, sendo que o que deveria
se esperar desses Estados na verdade é que eles interferissem no Chile em prol do respeito aos direitos humanos, pois, dado
que os direitos humanos são universais e naturais, eles superam as fronteiras jurídicas e a soberania dos
Estados, e, no entanto, o que se observava no Chile eram que os interesses, sobretudo
econômicos e políticos, estavam colocados acima do respeito aos direitos
humanos.
Também
vale mencionar o que diz Ruiz (2009), o qual aponta que apesar de ser difícil
falar acerca do horror e sofrimento gerados pelos períodos de repressão
ocorridos na história humana, notadamente no século XX, é imprescindível que
eles sejam narrados pelas testemunhas, por mais que a narração delas tenha um
viés pessoal e não consiga passar integralmente toda a barbárie que elas
testemunharam. Esse processo de narrar os acontecimentos, quando aplicado ao
caso específico do filme analisado, se mostra importante para permitir que as
gerações chilenas tenham o direito à memória respeitado, isto é, o direito de
saber o que aconteceu, e ao mesmo tempo o dever de memória, que é o dever de
lembrar e passar adiante esses acontecimentos para que as próximas gerações
também se indignem com as injustiças que foram cometidas e não permitam que as
atrocidades ocorridas no período militar chileno sejam repetidas, pois aqueles
que ouvem a narração, segundo Ruiz (2009), se convertem em testemunhas também.
Esse resgate e disseminação da memória não significa que o passado será
totalmente resolvido, mas permite tirá-lo da indiferença e do esquecimento ao
atualizar as questões dele decorrentes, muitas das quais ainda apresentam seus
desdobramentos nos dias atuais. Nas palavras do autor:
[...] É importante que os fatos sejam narrados pelas
testemunhas, ainda que o testemunho nunca faça jus ao que aconteceu, pois é na
precisão de vários acontecimentos que não foram contados e que se amontoam nas
ruínas da história que se poderá sentir o sopro do que não tem expressão. [...]
Assim, apesar da impossibilidade de narrar [os acontecimentos integralmente], o
pior pesadelo para quem testemunha e vive o sofrimento é não poder contá-lo
para ninguém, é correr o risco de que ninguém tome conhecimento do suplício
sofrido e a injustiça se perpetue na ignorância e em um silêncio vazio, ausente
de intérpretes que possam lhe dar sentido. (RUIZ, 2009, p.134)
Fazer
com que as pessoas tomem conhecimento do que aconteceu no golpe de Estado de
1973 do Chile parece ser exatamente o que o diretor Helvio Soto procura ao
produzir o filme, pois notadamente a película traz muito da visão de Soto
acerca do golpe e representa uma lembrança ainda muito viva na mente do
diretor, dado que ele foi exilado por conta do golpe e produziu o filme
pouquíssimo tempo depois do mesmo. Desse
modo, fica evidente que o filme também apresenta um forte caráter de
documentário, pois foca muito mais em retratar fatos que realmente ocorreram,
ainda que pelo viés da visão de Helvio Soto, do que em contar uma história
fictícia. Neste sentido o recurso cinematográfico se mostra de grande
relevância, pois de acordo com o próprio Ruiz (2009), “[...] o essencial do
sofrimento não pode ser falado, pois é feito de silêncios” (p.139), de modo que
aquele que assiste consegue captar com maior realismo a situação que se
apresentava ao povo chileno, mas nunca, é claro, integralmente como aqueles que
viveram e tiveram a experiência.
Helvio
Soto seria, desse modo, conforme a interpretação de Ruiz (2009) uma testemunha,
pois ele recupera uma parte da realidade da História chilena que poderia ficar
perdida no passado se ninguém fizesse nada. A fala de uma das personagens ao
final do filme, na cena do velório do poeta chileno Pablo Neruda, evidencia a
intenção do diretor ao produzir o filme: “ninguém pode testemunhar sem
memória”, o que torna claro que ele tinha a intenção de manter um dos episódios
mais marcantes da História chilena vivo e eternizado na memória do seu povo,
permitindo que as novas gerações conheçam seu passado. Ao mesmo tempo, também
se nota o propósito de, de algum modo, tentar resgatar a dignidade humana dos
que foram excluídos e vencidos, e fazer justiça àqueles que foram vítimas do
golpe, e também àqueles que ainda seriam vítimas da ditadura, dado que, ao
final do filme, ela, que se tornaria
uma das mais violentas ditaduras latino-americanas, ainda estava apenas
começando.
Análise de elementos
cinematográficos e iconografia
Iluminação
O filme emula a iluminação ambiente, sendo que a utilização
de iluminação artificial serve para realçar a iluminação natural, tentando
trazer um caráter documental ao filme, se utilizando da iluminação disponível,
e assim, trazendo uma maior realidade ao mesmo. Este tipo de iluminação perdura
por toda a película.
Sonografia
O filme tem sua trilha sonora assinada por Astor Piazzolla, que basicamente
pode ser dividida em dois momentos distintos, no que se refere a linha de
temporalidade que vai de 1970 até 1973, a trilha sonora aparece em meio as
reuniões daqueles que apoiavam Allende, e permeia os discursos dos mesmos,
reforçando o tom de esperança que eles possuíam. Já em um segundo momento, quando
Allende é morto no dia do golpe, a trilha sonora assume um tom de tristeza,
reforçando o caráter dramático que o final do filme tenta passar ao público.
Logo, torna-se claro no filme, que as músicas estão
associadas a reuniões de pessoas, seja em momentos de contentamento ou não.
Percebe-se que por vezes temos a figura dos cantores, e não somente a sua voz.
Isso reforça que o sentimento anunciado na música é mesmo que reside nos
cantores e demais personagens presentes. Um exemplo disto é o coro daqueles que
afirmam que Neruda, Allende e o povo chileno estarão presentes agora e sempre,
acompanhado pela música de Piazzola, na cena do enterro de Neruda. Assim vemos
a unidade encontrada no povo, os personagens mostram que, apesar de tudo que
aconteceu, o povo Chileno iria continuar na luta pela liberdade com
determinação e vontade.
Pode-se ouvir, em algumas cenas, o tic-tac do relógio que
permeia o som de fundo, mostrando que o tempo está passando. Isso ocorre
principalmente nas cenas em que algum personagem precisa tomar decisões, e
também deixam claro que o golpe se aproxima, atribuindo caráter de urgência.
Enredo
A história
é contada em terceira pessoa e através da câmera (um observador ideal) o
espectador vê as ações que estão ocorrendo em lugares e temporalidades
distintos. O filme, amparado por este recurso, conta com duas linhas de
temporalidade que se intercalam no desenvolvimento da história, uma delas trata
dos acontecimentos do dia 11 de setembro de 1973, o dia do golpe, e a outra
trata do momento em que Allende vence as eleições em 1970, até o dia em que o
golpe é realizado, mostrando a arquitetação do golpe, com os boicotes
econômicos e manobras políticas que levaram a tal acontecimento. Existe uma
preocupação clara em fazer com que o espectador consiga entender sem
dificuldade o momento em que fatos estão ocorrendo e ao mesmo tempo mantendo
uma certa ordem cronológica entre os acontecimentos, para tanto é utilizado o
um recurso de movimento de câmera, o enquadramento, que focaliza relógios e
calendários. Estes indicam os horários do dia do golpe, temporalizam a ação e
informam o espectador.
Cortes de Cenas
Os cortes de cena procuram conectar situações, como no caso
do final de uma cena em que um personagem começa a fechar uma gaveta, e
imediatamente, antes dele terminar de fechar a gaveta, dá-se início uma nova
cena com um personagem terminando de fechar uma gaveta em outro lugar ou a cena
em que um senhor escuta uma rádio e arruma a sintonia do rádio em seu carro, e
imediatamente, antes que ele termine de fazer isso, uma nova cena, com uma
mulher arrumando o rádio em casa, dá continuidade a trama. Em geral, as cenas
deste filme são articuladas de modo a mostrar uma relação entre os
acontecimentos mostrados.
Movimentos de Câmera
A obra utiliza em uma das primeiras cenas do recurso do
movimento dentro do quadro, os objetos de cena que são os carros de guerra são
filmados de frente enquanto se movimentam e enchem a tela. Isso resulta na
impressão de eles iriam passar por cima do espectador e de tudo que a ele se
opusesse, preenchendo a tela.
Por vezes a câmera se desloca lateralmente num movimento
panorâmico à procura do personagem. O diretor usou desta estratégia para
informar e enfatizar a ideologia do personagem retratado, mostrando por
diversas vezes, neste movimento, fotografias de Allende, Che Guevara, Karl
Marx, e demais líderes da esquerda. No entanto, há uma curiosa cena em que a
câmera percorre uma parede com fotos eróticas sugerindo um vazio ideológico dos
personagens (empresários do Chile). O movimento de câmera evidencia e
contextualização a ação, como fez ao mostrar o símbolo ITT (empresa de
telefonia norte-americana que liderou um grupo empresarial na busca pela
desestabilização econômica do Chile).
Percebe-se também que a câmera focaliza janelas no decorrer
do filme, mostrando civis observando através delas, denotando uma situação de
falta de liberdade de expressão e opinião, visto que os personagens parecem
apreensivos.
Iconografia
O poético título parece tentar esconder as tensões da
guerra. Isso vai de encontro com a fachada de normalidade característica da
ditadura, ao mesmo tempo em que denuncia o autor do golpe, pois apesar de não
ser explicitado no filme, este era o nome da operação arquitetada pelas forças
reacionárias do Chile que culminou com o golpe de Estado de 1973.
O filme faz questão de retratar o presidente Salvador
Allende real. Para tanto, é usado fotografias e até mesmo uma película com
depoimento do presidente discursando em seu idioma, o espanhol. Isso reforça
ideia do filme em manter-se próximo a esfera do real, inserindo sempre que
possível, elementos desta esfera mesmo sob condição de interrupção da sua
linearidade, ou seja, de um filme produzido em língua francesa permite-se
inserir a língua originaria do personagem. Ainda nessa linha de tentar manter a
imagem real de Allende, nota-se que o ator que o interpreta nunca tem seu rosto
completamente mostrado, o que também indica o propósito de preservar a imagem
real do presidente, visto que os acontecimentos ainda eram muito recentes e
também demonstra o intuito do diretor de retratar o presidente como um misto de
mártir e herói se tratando da história chilena. A cena da invasão do Palácio de
La Moneda, que mostra o assassinato é de suma importância, por refutar a ideia
de suicídio transmitida como causa morte do então presidente.
O filme retrata de forma simbólica e sutil o ganho e perda
de direitos. Em 1971 durante a celebração da conquista da oferta de leite às
crianças, o ministro das finanças dá uma vaquinha (bibelô) para ela em garantia
do seu direito ao leite. Em 1973 o pai,
que é presidente da fábrica, tira o bibelô da criança simbolizando que esta não
terá mais direito ao leite devido ao golpe que está prestes a se consumar. A
criança quando perde seus direitos, simbolizados pelo objeto se entristece. E
por fim, percebe-se que de 1971 a 1973 as reuniões da esquerda ocupam lugares
menores, isso denuncia declínio da esquerda, frente a ascensão da direita.
Referências
BENEVIDES, M. V. “Cidadania e
Direitos Humanos”. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de
São Paulo, 2015.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
RUIZ, C. B. Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São
Leopoldo: Unisinos: 2009.
CHOVE sobre Santiago. Direção:
Hélvio Soto. Produção: Film Marquise - França; Studios de Long Metrage -
Bulgária, 1975. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gi4KFRCBDkM>.
Acesso em 30/11/2015.
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