quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Leitura do filme Chove Sobre Santiago à luz da discussão sobre cidadania e direitos humanos



Dirigido por Helvio Soto, cineasta chileno que foi exilado após o golpe de Estado ocorrido no Chile em 11 de setembro de 1973, o filme Chove Sobre Santiago é de 1975, e relata justamente os acontecimentos do dia do golpe, os quais são intercalados com cenas ocorridas nos anos anteriores ao golpe, desde quando Salvador Allende vence as eleições presidenciais em 1970 e dá-se início a um plano para prejudicar seu governo que culmina no golpe. O filme tem seu final no enterro do poeta chileno Pablo Neruda, o qual apoiava o governo da Unidade Popular e faleceu em 23 de setembro de 1973, pouquíssimos dias depois do golpe. Precisamente, o filme foi proibido de ser exibido no Chile pelo regime militar.
A coalizão Unidade Popular, a qual era representada por Allende, apesar de assumir o poder em 1970 e conseguir implementar mudanças significativas no país, sofre com as sucessivas tentativas realizadas para fragilizar seu governo, facilitadas pelo fato de que boa parte do alto escalão do Estado chileno continuou o mesmo do governo de Eduardo Frei, que governou o Chile de 1964 a 1970 quando Allende que vence as eleições contra Jorge Alessandri, candidato que era do partido de Frei. O governo de Frei também tinha apoio norte-americano, o qual foi decisivo nesse processo de fragilização do governo de Allende e no golpe de 1973.
O país que inicialmente, com o governo de Allende, vê mudanças importantes para a construção da democracia, passa a assistir a um processo de sucessivos boicotes motivados pelos interesses norte-americanos, do empresariado estrangeiro e da burguesia chilena. Retira-se o fornecimento de itens básicos para a vida da população, como por exemplo o leite, conforme é mostrado no filme, com o intuito de comprometer a imagem do governo de Allende diante da população, e essa estratégia consegue dar resultados. A situação que se instaura com o fim do fornecimento de bens importantes para a população, do estímulo à realização de diversas greves pelo país e outras tentativas de boicote, nos leva a notar que ocorre um retrocesso no que diz respeito a ideia de cidadania, sobretudo, nesse caso, no que se refere aos direitos sociais, que tratam do direito de ter participação na riqueza coletiva.
Percebe-se nessa influência internacional, não apenas dos norte-americanos, mas também das outras ditaduras já instauradas na América Latina no período, aquilo que foi abordado por Carvalho (2002) como sendo uma crise do Estado-nação, que seria ocasionada, entre outras coisas, pela internacionalização do sistema capitalista, a qual é cada vez mais acelerada por conta dos avanços tecnológicos, e isso acaba resultando numa redução do poder dos Estados, que agora sofrem a interferência dos outros, afetando fortemente a natureza dos direitos já existentes assim como o processo de criação, ou não, de novos direitos, sobretudo no que diz respeitos aos direitos políticos e sociais, conforme é apontado pelo autor, lembrando que a construção da cidadania está intimamente relacionada a forma como as pessoas se relacionam com o Estado e com a nação, sendo que o ideal para a cidadania é que exista uma relação positiva das pessoas com o Estado e a nação, pois as pessoas se tornam cidadãs, dentro da noção de cidadania como nós a conhecemos, à medida em que passam a se sentir parte de uma nação e de um Estado.
Sobre isso merece destaque outra observação feita por Carvalho (2002), que é a noção de que a identificação com a nação pode ser mais forte do que a lealdade ao Estado. Isso é visto claramente no filme na cena em que milhares de chilenos estão presos no Estádio Nacional vendo os militares agredindo alguns dos que contestam suas atitudes. Os chilenos presos, em certa altura, começam a cantar um hino que expressa a lealdade deles para com a nação chilena, em um momento no qual se veem numa situação em que o Estado se mostra como algo completamente estranho à ideia de nação. Essa situação, segundo Carvalho, se explicaria pelo fato de que a identidade com a nação, se deve a fatores como religião, língua e lutas e guerras contra inimigos comuns, enquanto que a lealdade ao Estado dependeria do grau de participação na vida política, participação esta que já se via completamente impossibilitada para o povo chileno no dia 11 de setembro de 1973.
Da constatação de que não haviam mais direitos políticos para os chilenos, chegamos a outro problema: conforme Carvalho (2002), se não tem direitos políticos, não existem direitos civis, os quais englobam as liberdades individuais como a liberdade de opinião e organização, e sobretudo o direito à vida. Isso quer dizer que a conquista de melhorias significativas em prol da construção da democracia pela qual o Chile vinha passando, foi seguida por uma supressão de direitos e garantias, um imenso retrocesso no que diz respeito a cidadania do povo chileno, visto que os 3 tipos de direitos necessários para a cidadania se encontravam profundamente comprometidos.
Para além dessas observações, percebe-se claramente um total desrespeito aos direitos humanos, pois, conforme o observado por Benevides (2015), ainda que as pessoas de um país não tenham seus direitos de cidadania respeitados, visto que a cidadania trata dos direitos e deveres que se circunscrevem nos limites de um Estado-nação, elas ainda possuem direitos humanos fundamentais, pois estes são universais e naturais, ou seja, não dependem da realidade específica de um país, e com isso, portanto, se estendem a todos os seres humanos. Isso se dá porque os direitos humanos se referem à pessoa humana independentemente das características físicas, culturais, da classe social, da nacionalidade, dos direitos de cidadania contemplados no país em que cada um vive, e até mesmo da personalidade que cada ser humano possa ter. Logo, em vista desses direitos fundamentais, nenhum ser humano pode ser torturado, humilhado cruelmente ou ter sua vida tirada por outros, pois o núcleo dos direitos humanos é o direito à vida. Além disso, também é direito fundamental de todo ser humano o de ser julgado imparcialmente e poder defender-se judicialmente. Nota-se que todos esses direitos estavam severamente desrespeitados no golpe, visto que os militares julgavam arbitrariamente aqueles que os contestavam e com um total desrespeito à vida dessas pessoas. Benevides (2015) ainda nos leva a refletir sobre o fato de que havia o consentimento dos países vizinhos ao Chile, dos quais muitos já se encontravam em ditaduras, e dos norte-americanos, com as violações aos direitos fundamentais cometidos no Chile, sendo que o que deveria se esperar desses Estados na verdade é que eles interferissem no Chile em prol  do respeito aos direitos humanos, pois, dado que os direitos humanos são universais e naturais, eles superam as  fronteiras jurídicas e a soberania dos Estados, e, no entanto, o que se observava no Chile eram que os interesses, sobretudo econômicos e políticos, estavam colocados acima do respeito aos direitos humanos.
Também vale mencionar o que diz Ruiz (2009), o qual aponta que apesar de ser difícil falar acerca do horror e sofrimento gerados pelos períodos de repressão ocorridos na história humana, notadamente no século XX, é imprescindível que eles sejam narrados pelas testemunhas, por mais que a narração delas tenha um viés pessoal e não consiga passar integralmente toda a barbárie que elas testemunharam. Esse processo de narrar os acontecimentos, quando aplicado ao caso específico do filme analisado, se mostra importante para permitir que as gerações chilenas tenham o direito à memória respeitado, isto é, o direito de saber o que aconteceu, e ao mesmo tempo o dever de memória, que é o dever de lembrar e passar adiante esses acontecimentos para que as próximas gerações também se indignem com as injustiças que foram cometidas e não permitam que as atrocidades ocorridas no período militar chileno sejam repetidas, pois aqueles que ouvem a narração, segundo Ruiz (2009), se convertem em testemunhas também. Esse resgate e disseminação da memória não significa que o passado será totalmente resolvido, mas permite tirá-lo da indiferença e do esquecimento ao atualizar as questões dele decorrentes, muitas das quais ainda apresentam seus desdobramentos nos dias atuais. Nas palavras do autor:
[...] É importante que os fatos sejam narrados pelas testemunhas, ainda que o testemunho nunca faça jus ao que aconteceu, pois é na precisão de vários acontecimentos que não foram contados e que se amontoam nas ruínas da história que se poderá sentir o sopro do que não tem expressão. [...] Assim, apesar da impossibilidade de narrar [os acontecimentos integralmente], o pior pesadelo para quem testemunha e vive o sofrimento é não poder contá-lo para ninguém, é correr o risco de que ninguém tome conhecimento do suplício sofrido e a injustiça se perpetue na ignorância e em um silêncio vazio, ausente de intérpretes que possam lhe dar sentido. (RUIZ, 2009, p.134)
Fazer com que as pessoas tomem conhecimento do que aconteceu no golpe de Estado de 1973 do Chile parece ser exatamente o que o diretor Helvio Soto procura ao produzir o filme, pois notadamente a película traz muito da visão de Soto acerca do golpe e representa uma lembrança ainda muito viva na mente do diretor, dado que ele foi exilado por conta do golpe e produziu o filme pouquíssimo tempo depois do mesmo.  Desse modo, fica evidente que o filme também apresenta um forte caráter de documentário, pois foca muito mais em retratar fatos que realmente ocorreram, ainda que pelo viés da visão de Helvio Soto, do que em contar uma história fictícia. Neste sentido o recurso cinematográfico se mostra de grande relevância, pois de acordo com o próprio Ruiz (2009), “[...] o essencial do sofrimento não pode ser falado, pois é feito de silêncios” (p.139), de modo que aquele que assiste consegue captar com maior realismo a situação que se apresentava ao povo chileno, mas nunca, é claro, integralmente como aqueles que viveram e tiveram a experiência.
Helvio Soto seria, desse modo, conforme a interpretação de Ruiz (2009) uma testemunha, pois ele recupera uma parte da realidade da História chilena que poderia ficar perdida no passado se ninguém fizesse nada. A fala de uma das personagens ao final do filme, na cena do velório do poeta chileno Pablo Neruda, evidencia a intenção do diretor ao produzir o filme: “ninguém pode testemunhar sem memória”, o que torna claro que ele tinha a intenção de manter um dos episódios mais marcantes da História chilena vivo e eternizado na memória do seu povo, permitindo que as novas gerações conheçam seu passado. Ao mesmo tempo, também se nota o propósito de, de algum modo, tentar resgatar a dignidade humana dos que foram excluídos e vencidos, e fazer justiça àqueles que foram vítimas do golpe, e também àqueles que ainda seriam vítimas da ditadura, dado que, ao final do filme, ela, que se tornaria uma das mais violentas ditaduras latino-americanas, ainda estava apenas começando.

Análise de elementos cinematográficos e iconografia

Iluminação
O filme emula a iluminação ambiente, sendo que a utilização de iluminação artificial serve para realçar a iluminação natural, tentando trazer um caráter documental ao filme, se utilizando da iluminação disponível, e assim, trazendo uma maior realidade ao mesmo. Este tipo de iluminação perdura por toda a película.

Sonografia
O filme tem sua trilha sonora assinada por Astor Piazzolla, que basicamente pode ser dividida em dois momentos distintos, no que se refere a linha de temporalidade que vai de 1970 até 1973, a trilha sonora aparece em meio as reuniões daqueles que apoiavam Allende, e permeia os discursos dos mesmos, reforçando o tom de esperança que eles possuíam. Já em um segundo momento, quando Allende é morto no dia do golpe, a trilha sonora assume um tom de tristeza, reforçando o caráter dramático que o final do filme tenta passar ao público.
Logo, torna-se claro no filme, que as músicas estão associadas a reuniões de pessoas, seja em momentos de contentamento ou não. Percebe-se que por vezes temos a figura dos cantores, e não somente a sua voz. Isso reforça que o sentimento anunciado na música é mesmo que reside nos cantores e demais personagens presentes. Um exemplo disto é o coro daqueles que afirmam que Neruda, Allende e o povo chileno estarão presentes agora e sempre, acompanhado pela música de Piazzola, na cena do enterro de Neruda. Assim vemos a unidade encontrada no povo, os personagens mostram que, apesar de tudo que aconteceu, o povo Chileno iria continuar na luta pela liberdade com determinação e vontade.
Pode-se ouvir, em algumas cenas, o tic-tac do relógio que permeia o som de fundo, mostrando que o tempo está passando. Isso ocorre principalmente nas cenas em que algum personagem precisa tomar decisões, e também deixam claro que o golpe se aproxima, atribuindo caráter de urgência.

Enredo
             A história é contada em terceira pessoa e através da câmera (um observador ideal) o espectador vê as ações que estão ocorrendo em lugares e temporalidades distintos. O filme, amparado por este recurso, conta com duas linhas de temporalidade que se intercalam no desenvolvimento da história, uma delas trata dos acontecimentos do dia 11 de setembro de 1973, o dia do golpe, e a outra trata do momento em que Allende vence as eleições em 1970, até o dia em que o golpe é realizado, mostrando a arquitetação do golpe, com os boicotes econômicos e manobras políticas que levaram a tal acontecimento. Existe uma preocupação clara em fazer com que o espectador consiga entender sem dificuldade o momento em que fatos estão ocorrendo e ao mesmo tempo mantendo uma certa ordem cronológica entre os acontecimentos, para tanto é utilizado o um recurso de movimento de câmera, o enquadramento, que focaliza relógios e calendários. Estes indicam os horários do dia do golpe, temporalizam a ação e informam o espectador.
Cortes de Cenas
Os cortes de cena procuram conectar situações, como no caso do final de uma cena em que um personagem começa a fechar uma gaveta, e imediatamente, antes dele terminar de fechar a gaveta, dá-se início uma nova cena com um personagem terminando de fechar uma gaveta em outro lugar ou a cena em que um senhor escuta uma rádio e arruma a sintonia do rádio em seu carro, e imediatamente, antes que ele termine de fazer isso, uma nova cena, com uma mulher arrumando o rádio em casa, dá continuidade a trama. Em geral, as cenas deste filme são articuladas de modo a mostrar uma relação entre os acontecimentos mostrados.

Movimentos de Câmera
A obra utiliza em uma das primeiras cenas do recurso do movimento dentro do quadro, os objetos de cena que são os carros de guerra são filmados de frente enquanto se movimentam e enchem a tela. Isso resulta na impressão de eles iriam passar por cima do espectador e de tudo que a ele se opusesse, preenchendo a tela.
Por vezes a câmera se desloca lateralmente num movimento panorâmico à procura do personagem. O diretor usou desta estratégia para informar e enfatizar a ideologia do personagem retratado, mostrando por diversas vezes, neste movimento, fotografias de Allende, Che Guevara, Karl Marx, e demais líderes da esquerda. No entanto, há uma curiosa cena em que a câmera percorre uma parede com fotos eróticas sugerindo um vazio ideológico dos personagens (empresários do Chile). O movimento de câmera evidencia e contextualização a ação, como fez ao mostrar o símbolo ITT (empresa de telefonia norte-americana que liderou um grupo empresarial na busca pela desestabilização econômica do Chile).
Percebe-se também que a câmera focaliza janelas no decorrer do filme, mostrando civis observando através delas, denotando uma situação de falta de liberdade de expressão e opinião, visto que os personagens parecem apreensivos.

Iconografia
O poético título parece tentar esconder as tensões da guerra. Isso vai de encontro com a fachada de normalidade característica da ditadura, ao mesmo tempo em que denuncia o autor do golpe, pois apesar de não ser explicitado no filme, este era o nome da operação arquitetada pelas forças reacionárias do Chile que culminou com o golpe de Estado de 1973.
O filme faz questão de retratar o presidente Salvador Allende real. Para tanto, é usado fotografias e até mesmo uma película com depoimento do presidente discursando em seu idioma, o espanhol. Isso reforça ideia do filme em manter-se próximo a esfera do real, inserindo sempre que possível, elementos desta esfera mesmo sob condição de interrupção da sua linearidade, ou seja, de um filme produzido em língua francesa permite-se inserir a língua originaria do personagem. Ainda nessa linha de tentar manter a imagem real de Allende, nota-se que o ator que o interpreta nunca tem seu rosto completamente mostrado, o que também indica o propósito de preservar a imagem real do presidente, visto que os acontecimentos ainda eram muito recentes e também demonstra o intuito do diretor de retratar o presidente como um misto de mártir e herói se tratando da história chilena. A cena da invasão do Palácio de La Moneda, que mostra o assassinato é de suma importância, por refutar a ideia de suicídio transmitida como causa morte do então presidente.
O filme retrata de forma simbólica e sutil o ganho e perda de direitos. Em 1971 durante a celebração da conquista da oferta de leite às crianças, o ministro das finanças dá uma vaquinha (bibelô) para ela em garantia do seu direito ao leite.  Em 1973 o pai, que é presidente da fábrica, tira o bibelô da criança simbolizando que esta não terá mais direito ao leite devido ao golpe que está prestes a se consumar. A criança quando perde seus direitos, simbolizados pelo objeto se entristece. E por fim, percebe-se que de 1971 a 1973 as reuniões da esquerda ocupam lugares menores, isso denuncia declínio da esquerda, frente a ascensão da direita.

Referências
BENEVIDES, M. V. “Cidadania e Direitos Humanos”. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2015.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
RUIZ, C. B. Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos: 2009.

CHOVE sobre Santiago. Direção: Hélvio Soto. Produção: Film Marquise - França; Studios de Long Metrage - Bulgária, 1975. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gi4KFRCBDkM>. Acesso em 30/11/2015.

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